O livro que ninguém vai ler

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O livro é um objeto complexo. Ele não tem uma função como objeto em si, apesar de poder ser utilizado de várias maneiras além da leitura do seu conteúdo, afinal, um paralelepídedo é forma bem versátil. Desenvolver o  projeto gráfico para um objeto que possui textos e imagens é uma aventura fascinante que requer uma gama imensa de saberes.  Como sabemos, o livro é mais do que um objeto, ele envolve o ato de ler que deve ser estimulado de todas as formas. O trabalho do designer de livros é contemplar e valorizar essa função primordial do objeto contribuindo para uma memorável experiência de leitura.

A criação do livro se dá a partir de uma narrativa que, no caso do “O livro que ninguém vai ler”, veio na forma de texto. Um texto instigante e cheio de desafios criado pela Sylvia Orthof, autora de talento ímpar que subverteu, com humor nonsense, a literatura para crianças e jovens. Nessa história, escrita na década de 90, ela apresenta a Laura, uma adolescente com aspirações à escritora que acabara de ganhar um computador e estava aprendendo a usá-lo para escrever o seu primeiro livro. Acidentalmente, Laura derrama Coca-Cola no teclado e, sem nenhuma explicação plausível, o computador ganha vida própria. A narrativa passa a ter três vozes: a Laura, o computador e a história de amor que eles brigam para escrever. O duelo entre os dois protagonistas é divertido e caótico.

As definições conceituais, assim como os problemas, foram estabelecidas após a leitura e interpretação atenta do texto. Listamos os principais itens do nosso diagnóstico:

Contexto > O texto foi escrito na década de 90 mas esta edição foi publicada nos anos 2010. Como criar uma ambiência da época de quando a história foi escrita?

Tipografia > A autora cita no texto que a Laura está usando a fonte Arial Rounded MT para escrever o livro. Essa fonte não é adequada para textos pois não tem um bom uso do espaço e as suas extremidades arredondadas dificultam a leitura. O computador, ao assumir o comando da história, diz que vai mudar a fonte para Braggadocio e usar ela sempre que estiver digitando. Essa fonte foi desenhada para títulos, cartazes e letreiros. O seu desenho é complexo e ilegível quando aplicado em textos longos.

Organização > Sentimos a necessidade de identificar visualmente as  diferentes vozes do texto.

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Bem, colocados os problemas, vamos às soluções:

Contexto > Usar o desenho dos monitores antigos (de tubo) como elemento gráfico para a capa e para as bordas do miolo foi uma solução para deixar clara a ambiência dos anos 90.

Tipografia > O primeiro passo foi definir quais famílias tipográficas seriam conceitualmente adequadas para substituir as citadas pelas autora:

Arial Rounded | A Myriad Pro, criação de Robert Slimbach e Carol Twombly para a Adobe Systems, possuia as características que precisávamos: popular como a Arial Rounded só que mais versátil e econômica

Braggadoccio | A Emigre EmperorTen, criada por Suzana Licko, carrega em si a visualidade de revolução digital ao incorporar o pixel no seu desenho.

O segundo passo foi criar um bom argumento para defendermos a ideia de não seguir o que foi definido pela própria autora.

Iniciamos uma vasta pesquisa na bibliografia de Sylvia mas foi na sua biografia que achamos a solução: o teatro esteve sempre presente na sua trajetória, ela foi atriz e autora teatral. Então, construímos uma analogia com o espetáculo teatral para que neste livro, o papel da Arial Rounded fosse interpretado pela atriz Myriad Pro SemiCondensed e o papel do Braggaddocio fosse interpretado pela Emigre EmperorTen.

Criamos uma ilustração tipográfica para reforçar esse jogo de papéis. Escrevemos a palavra Braggadocio, repetidamente ocupando uma página inteira, usando a tipografia Emigre EmperorTen, e fizemos o mesmo com a Arial Rounded e a Myriad.

No final do livro, no glossário, revelamos a verdadeira identidade das tipografias.

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Organização > Foi necessário decupar o texto para identificar os momentos em que as diferentes vozes aparecem na narrativa. Percebemos que não existia um parâmetro definido para a entrada de cada personagem em cena. Isso nos levou a criar um sistema visual que identificasse a voz de cada ator mas que fosse flexível. Para tal, definimos os elementos gráficos (forma, tipografia e paleta cromática) e articulamos suas combinações para cada personagem.

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A> Laura > texto em Myriad, com fundo em gradação de azul com bordas em azul 100%.

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B> Computador > texto em Emigre EmperorTen, com fundo em gradação de amarelo e bordas em amarelo 100%

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C> História contada por Laura e pelo computador > texto em Myriad, fundo branco com bordas em azul 100%.

O resultado final é complexo, instigante e divertido refletindo as características do texto. A construção de um livro é um processo colaborativo  envolvendo o trabalho de profissionais de diferentes áreas. Ter tido a oportunidade de participar dessa realização foi um experiência gratificante. Esperamos, com esse artigo, contribuir para a valorização de todos os agentes que atuam nesse mercado tão importante.

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